Tenho uma mesa reservada
Letícia Gullo, minha sobrinha, decidiu comer coxinhas em Bueno. Precisou para o carro fora da cidade e seguir a pé. Chegou, foi se infiltrando entre as centenas de pessoas e alerta a procura de mesa. Nada, nenhum esperança. Aquilo lá é um fenômeno. De repente, ela viu uma mesa vazia, foi se aproximando, perguntou ao garçom:
– Ali tem uma mesa livre, vazia.
-Está reservada.
-Mas estou aqui há uma meia hora e ninguém chegou.
– Aquela mesa, minha jovem é do Ignácio de Loyola. Está sempre à espera dele. Pode chegar de surpresa e ficar em pé seria uma desconsideração.
Quando Letícia me contou, juro que me emocionei. Querem homenagem maior? Porque não há escritor que não fique intrigado com o grande mistério do ofício. Onde chegam as palavras, como elas agem sobre as pessoas? Modificam alguma coisa? Transformam?
Essas perguntas permanecem um enigma, ainda que, aqui e ali, pequenos pontos luminosos mostrem a curiosa trajetória de um texto.
Uma crônica no jornal O Estado de S.Paulo, nascida da sede, do calor e de uma coxinha dourada vista na estufa de um boteco das mais simples acionou as engrenagens que levaram à transformação de uma família, de um lugar. Num domingo, quase dez anos atrás embalado pela paisagem que eu descortinava na estrada Araraquara-Silvânia, que me parecia a Toscana em suas nuances de verde, marrom e amarelo variados, parei para tomar uma água gelada naquele empório modesto. Estava desencadeado o processo que não foi acaso, nem coincidência, tais coisas não existem. O que há são linhas que a vida traça, solta e espera que alguém, em determinado momento, retrace, dê os ângulos, componha o desenho necessário.
Em vez da água foi uma cerveja, junto com uma coxinha que me lembrava a infância em casa, massa de batata pura, frango desfiado saborosos, caseiro, e em porção generosa. Três meses depois, voltei ao plugar e me assustei com o movimento, Bueno era vilarejo prosaico, quieto, mero ponto de passagem. De repente, uma multidão dominava a pracinha da estação. Havia filas para comprar as coxinhas. E então Sonia e Paulo me mostraram a minha crônica emoldurada na parede. Antes, vendiam 40 coxinhas no sábado. Naquela altura, eram quinhentas. E o negócio cresceu em proporção geométrica, espantosa.
O tempo passou, eu ia a vinha e cada vez me assombrava. Filas de carros, mesas, gente, gente, gente. A pacata Bueno deixara de existir, não sei se para o bem ou para o mal. A vendinha tinha sido reformadas, depois veio um barracão, depois outro, depois um longe, e empregos, impostos, equipamentos, fornecedores, uma rede estendida. As coxinhas se tornaram uma instituição, símbolo de uma cidade.
Sonia e Paulo são empreendedores natos. Vislumbram a oportunidade, investiram, aplicaram sem medo, cresceram, trabalham, avançam. Não sei ainda porque faculdades de administração de Araraquara ainda não fizeram um case de assunto Bueno. E aquele programa Pequenas Ideias, Grandes Negócios? Pauta Pronta.
Durante anos todos tenho sido parado na rua aqui em Araraquara. Um quer que eu vá ver sua loja; outro, a pastelaria; um terceiro, a lanchonete; ou o café, o novo bar. Acham que tenho o toque, basta uma crônica e tudo se torna sucesso. Tem quem me pergunte quanto cobro por um texto, sem saber que eles são inspiração, intuição, olhar para o diferenciado, alerta para poesia. Não sou um mágico nem um especialista em marketing que sei o que fazer. Não sei nada! No caso de Bueno, fui apenas um intermediário entre um ponto e ebulição, que esperava o start. Não podem imaginar a alegria, o orgulho ao ver que algumas linhas partidas do coração, de uma sensação boa numa manhã de domingo, provocaram a mudança total em uma situação, para o bem de uma família, uma comunidade. Poder da palavra.
Um pavilhão ali leva meu nome. Alegrei-me. Agora, sei que há mesa permanentemente reservada para mim. Ninguém senta-se nela. Sonia, Paulo, se eu chegar de surpresa, não sei preocupem, peguem um banquinho e sento-me no quintal embaixo de uma mangueira. Tem mangueira aí, não tem? Mas saibam que termino o ano feliz com a minha mesa reservada. É de alguma maneira um prêmio literário.